terça-feira, 25 de março de 2014

UM PEQUENO DIÁRIO DE UM MÉDICO NA REVOLUÇÃO DE 30


O oficial médico Lucidoro Ferreira dos Santos participou da campanha vitoriosa das tropas getulistas em outubro de 1930.  Anotou suas observações num pequeno diário de bolso. Ele saiu de Ponta Grossa (PR) de trem, com o 13 RI, indo para Itararé, onde participou das batalhas e, com a rendição das tropas legalistas, foi para Itapetininga, Sorocaba, São Paulo e finalmente Rio de Janeiro. Para retornar, tomou o barco Itassuce no porto do Rio, fez escala em Santos e aportou em Paranaguá.  Em trem fez o trajeto de Paranagua a Curitiba e depois para Ponta Grossa.  Vaí aí a sua modesta mas de certo modo reveladora narrativa.    

A CAPA DO LIVRO DE ANOTAÇÕES DE BOLSO


 DIA 10 - Saída da estação de Ponta Grossa com lágrimas no olhos pela comoção e vibrando pelo entusiasmo pela conquista da vitória  e pela liberdade do povo brasileiro.  Segundo trem... em Boqueirão fizemos a sesta... 8 horas chegamos na estação de Engenheiro Schamber. Ainda sem almoço (12 1/2) partimos de caminhão incorporado ao corpo de saúde da polícia com destino a Sengés e lá chegamos às oito horas da noite, onde fomos recebidos à bala.

Durante toda a noite eu dormi no ar livre, debaixo de uma foguetaria contínua.
11. Requisitou-se medicamentos de uma farmácia e construiu-se o posto de Saúde na Igreja Presbiteriana e como esta foi bombardeada pela artilharia e pelos aeroplanos, tivemos que transportar os feridos para a fábrica de camisas Bordalo e Cia;  aí permanecemos o dia e toda a noite sem perigo (nessa fábrica estavam alojadas 30 famílias);  antes de anoitecer fui à Igreja buscar o fuzil do tenente médico e tive que me ir arrastando porque as balas choveram sobre mim.
12. Acordei-me às sete horas, tomei café no alojamento oficial, voltei novamente para o posto onde estive fazendo a relação dos medicamentos requisitados. fui almoçar, me prepararam um churrasco à gaúcha, voltei, quando cheguei no posto chegou um aeroplano bombardeando a cidade mas não fez estrago nenhum. 13 (há um pequeno engano de datas - 14.10.1930) - Saí com o PS para o alto do cafezal onde se travou o combate no qual houve muitos feridos e poucas baixas, inclusive a do capitão Izaltino no 15 BC e o L.Bravo.
14.Posei em Sengés.  


15. Fui posar no P.C do major Plaisan junto com o sargento Regio.
16. Fui encontrar-me (novamente) com o P.S do 13 RI na serraria do Morungava onde permaneci 6 dias. Comprei uma cabra de Jim Cordeiro de Lima.
22. Transportei-me da serraria ao P.C do 13 RI por ordem do coronel Parentins e lá cheguei com o P.S. às 6 1/2 da noite.
23. Fiquemos alojados em um rancho de sapé na margem direita do rio Morungava.
24. Fui a pé de Morungava a Sengés onde encontrei-me com o pessoal do Tiro 21 que, na retaguarda, escoltava o General Miguel Costa.      


25 - De manhã incorporei-me na primeira companhia do 13 RI onde aguardava ordens para o ataque na barrreira do Itararé. Lá permaneci até o almoço. Voltei para o acampamento onde soube que o exército legalista havia aderido à revolução, pois estava cercado pela retaguarda pelo 13 BC e pelos gaúchos.   Entusiasmos e vivas.
26 - às 2 horas embarquei para Itararé de caminhão e lá esperei ordens para embarcar para São Paulo levar os prisioneiros.   Telegrafei para casa.   Depois do almoço, estando eu alojado no quartel do 13 BC, (improvisado), estive para assistir um grande desastre, pois o nosso major Ademar embriagou-se e tendo atirado em um soldado do dito batalhão, outro seu colega quis intervir e, sendo pelo major, sua cabeça quebrada com uma garrafada.  



Esse soldado foi levado em padiola para o quartel. Seus colegas, depois de se armarem, quiseram vingança e iam saindo, alguns chorando de ódio, porém, graças a Deus houve um sargento de juízo que se colocou na porta e gritou : ninguém sairá por causa de um pau-dágua, não se deve sacrificar as tropas, o major está preso, esse indigno de nossa vitória... Decorreu-se o dia e somente às 8 horas da noite que partimos para S.Paulo com muita alegria porque o nosso sargento fora comissionado por ato de bravura.
27 - Ao amanhecer fomos notando pela linha o contentamento do povo pela nossa vitória.  


Ao chegar em Itapetininga a grande multidão aclamava o presidente e as moças distribuiram flores e lenços encarnados cantando os nossos soldados o hino a João Pessoa.  Em Tatuí fomos recebidos pela banda musical e a banda nacional escoltada pelo tiro de guerra.   Em Sorocaba chegamos ao meio dia e a tropa foi toda atormentada pelo povo que queria balas, distintivos, bandeiras dos revolucionários. Fomos todos almoçar em diversos hotéis, mas o povo que de coração é revoltoso, não saiu da estação;  grande foi essa manifestação, em que o povo oprimido de Sorocaba pôde expandir a sua alegria, do grande passo para a redenção do povo brasileiro. Partimos às 1h 40.    


28 - Chegamos em São Paulo às 7 horas da noite. Desembarcamos na Lapa e formamos aquartelamos no Parque da Água Branca. Procurei os paulistas, joguei 37
29 - Almocei e jantei na casa do Arnaldo.  Vi o Carlito e o Pernambuco. Deitei-me às 9 horas.
30 - Almocei com o Carlito e jantei com o Arnaldo.
31 - Despedi-me do pessoal do Ercoli e almocei com o Arnaldo. Fui para a estação e saimos para o Rio às 6 1/2 da tarde.
01 - Chegamos no Rio às 6 1/2 da noite e nos alojamos no QG da Força Pública, rua Frei Caneca. Deitei-me logo porque me achei cansado.
02´- Fiquei no quartel até o dia 3 pois este estava impedido.  


04 - Fui na Fortaleza de Villegaignon à procura do Arlindo. Telegrafei à casa. Visitei o submarino Maita (?). Visitei muitos pontos da cidade, encontrei-me com o Nelson e o Sebastião.
05 - Não fiz senão andar pela cidade.
06 - Saí às 8 horas da manhã para arranjar passe para eu regressar. Fui ao arsenal da marinha procurar o Arlindo, mas não o encontrei. Vi o Alodio Prestes.
07 - os comunistas quiseram arrombar o Banco do Brasil mas os fuzileiros navais os impediram. Andei passeando tratando do embarque, Deitei-me às 22 1/2.
08 - O quartel estava impedido, não se podia sair. Porém eu saí o dia todo, fui à procura do Arlindo, mas ainda não o pude ver.



09 - Levantei-me às seis horas, tomei café;  às oito horas fui para o cais para embarcar e demos pela falta da passagem. Voltei para o quartel, não achei. Fui no cais.  Tal foi o susto que nem acreditou quando um colega me disse que eu lhe dera a dita passagem para ele guardar. Viajamos a bordo do Itassuce, que partiu às 10 horas. Vi muitos colegas distapar o "mico" e que felizmente conservei-me firme (ele quis dizer que não vomitou).  Vi o forte em que o "cavanhaque" estava preso.
10 - 8 horas chegamos em Santos. Depois de tomar o café com o Ivan desembarquei para conhecer a cidade. Andei em toda a cidade, fui na praia de menino, fui na cidade de São Vicente...


... onde tive a mais agradável impressão. Achei uma portuguesinha batuta até. Saí de Santos às 5 horas, tudo correu bem, os colegas não enjoaram.



11 - às 8 horas cheguei em Paranaguá, visitei a Escola Normal, achei-a muito lindinha, encontrei-me com o Garantão e o Manuelito. Saí às 3 1/2 da tarde de lá, cheguei em Curitiba, procurei a Idília, encontrei sua casa onde pernoitei.
12 - Ao ir para a estação encontrei o velho Angelito com a madame. Estes justificaram sua retirada sem se despedirem. Embarquei, cheguei em Ponta Grossa ao meio dia e dez e cheguei em casa causando surpresa.    


quinta-feira, 6 de março de 2014

O MANUSCRITO ORIGINAL DO "DELIRIUM TREMENS" DE JOSÉ CADILHE (1931)

o poeta José Cadilhe

     QUEM FOI JOSÉ CADILHE, O AUTOR DOS VERSOS DE "DELIRIUM TREMENS", CUJO MANUSCRITO ORIGINAL TRAGO À LUZ ?

                    Por melhor que pudesse escrever, jamais poderia suplantar em qualidade e expressividade o texto da filha do poeta narrando a história dramática do pai, razão porque o transcrevo na íntegra, pedindo vênia à autora, por respeitosamente fazê-lo. E mais,agradecendo também ao blogueiro Washington Luis Bastos Conceição, que publicou o texto pela primeira vez.   Logo após o texto de Isa, vai o original do livro de poesias de José Cadilhe, o "Delirium Tremens", publicado postumamente em 1945, pelo Grupo Editor Renascimento do Paraná (GERPA) edição hoje rara (o sítio Estante Virtual, que congrega quase todos os sebos do Brasil (mais de 1600), por exemplo, não o tem disponível para venda hoje, 06.03.2014.  Por isso me alegro em disponibilizá-lo para todos.



“AFINAL, POR QUEM OS SINOS DOBRAM?”

                                                por Isa de Oliveira Siefert (Curitiba,1995)

         José Cadilhe é hoje uma larga avenida no bairro da Água Verde, em Curitiba. Foi um poeta sensível, um jornalista combativo, um escritor de largos recursos, um teatrólogo versátil, um humorista de qualidade. Mas há quatro pessoas ainda neste mundo, três mulheres e um homem, para quem ele foi e é, simplesmente Papai.

         E é assim, deixando de lado títulos e troféus que seu talento conquistou, que quero lembrar e falar dele hoje: da sua figura humana, do seu jeito de ser, de suas esperanças, de sua coragem, dos seus medos...
         E falar sobre um homem, e não sobre sua obra, é mais difícil porque mexe com uma dimensão diferente da vida: mexe com as lembranças, com a vivência, mexe enfim com a emoção de toda uma família.
         Sabem, eu acho que os poetas são uma raça frágil, pessoas mais cheias de carências e vulnerabilidades do que o comum dos mortais; porque são médiuns, eu diria, não com a conotação que dá a essa palavra a doutrina espírita: médiuns porque intermediários entre o sagrado e o profano, entre o ver e o sentir, entre a ação e a emoção.
         E é por aí, partindo dessa premissa, que tento contar alguma coisa dele, relatando as lembranças de seus filhos nos acontecimentos que marcaram sua história.
         Começo pelo fim, contando que morreu aos 62 anos: não tão moço que não tivesse provado mil sabores e dissabores da vida. Nem tão velho que tivesse esquecido o ímpeto dessas emoções... Emoções que foram muitas em sua vida, tão violentas algumas que deixaram sequelas na alma.
         No seu primeiro casamento era apenas um adolescente: tinha 17 anos e vivia com sua mulher, sua prima Siomara Maravalhas, de 19, em Porto de Cima, Paraná, onde era telegrafista da estrada de ferro. Os filhos foram chegando e os dois primeiros, Irene, uma linda garotinha de 10 meses, e José, um menininho frágil e doentio, morreram. Foram essas mortes seu primeiro encontro com a tristeza.
         E essa tristeza ele extravasou em versos num livrinho lindamente manuscrito, onde tentava confortar a mãe inconsolável. Esse livro, uma joia que guardei no cofre por muitos anos, tem seu fac-símile à disposição do público na “Sala da Memória” do Teatro Guaíra.
         Desse casamento três filhas lhes restaram: Eloyna, Hilda e Maria da Luz, mas o destino novamente lhe roubou alguém querido: Siomara, sua mulher, se foi, morrendo aos 28 anos e ficando enterrada sozinha naquele ermo, porque a família, tentando botar alguma distância de tanta dor, mudou-se para Curitiba. As crianças com 6, 4 e 2 anos, foram viver com os avós maternos.
         Algum tempo depois Cadilhe casou-se de novo, com Adelaide Menezes, sua prima também, mas em segundo grau, e foi buscar suas meninas. Relutantes os avós lhe entregaram as duas mais velhas, mas conservaram Maria, a caçula, a quem criaram com mimos e luxos que ele nunca pode dar a seus outros filhos.
         A carreira de poeta se iniciava por aí: trabalhando ainda na Rede Ferroviária, nas suas horas vagas, nas noites sem sono, escrevia e escrevia... E assim foram nascendo poemas, peças teatrais, crônicas políticas e humorísticas. Encenou suas primeiras peças, por ele mesmo dirigidas, com sucesso de público e crítica, no Teatro Guaíra da R. Dr. Murici.
          Nas mesas de bar foi encontrando amigos-irmãos, desses que partilham todos os sentimentos: e era um prazer verdadeiro ouvi-los conversar. Gente que comungava sua paixão pela palavra, que fazia da palavra sua ferramenta para esculpir a vida.
         Há muitos anos a Rede Globo levou ao ar uma novela “O Feijão e o Sonho”, que contava a saga de um poeta dividido entre a necessidade de suprir o lado prático da vida e aquela compulsão de fazer versos, de viver num mundo abstrato onde a vida era escrita e descrita, talvez mais do que vivida.
         Uma das filhas de Cadilhe, vendo a novela comentou: “é a história de nossa vida”... Pois é, eram tantos os filhos, era tanta a luta, era o feijão e o sonho em guerra permanente, mas... quando caía a noite, a poesia vinha a seu encontro e lá ia ele... ”Montado de carona na garupa leve do vento”, partindo para a boemia que lhe aquecia a alma e servia de combustível para, no dia seguinte, pensar no feijão, bater o ponto e retomar o fardo.
         Mas nem só de poesia se ocupava sua mente: a política era também o seu forte, achava que os desmandos e arbitrariedades do governo deviam ser expostos e combatidos. E foi por isso que resolveu largar o emprego na Rede, mudar para Ponta Grossa, Paraná, e tocar seu próprio jornal. Assim nasceu o “Diário dos Campos”, um jornal aguerrido que fazia cobrança dos maus serviços públicos, que desancava o ensino deficiente, denunciava falcatruas e oferecia soluções para problemas que atravancavam o progresso. Sabia motivar a população e os empresários em campanhas beneficentes, e pelo Natal fazia distribuição de gêneros e presentes a famílias necessitadas, no Parque Honório, engalanado para a festa. Havia música e declamações e a sociedade toda comparecia.
         Além de toda essa atividade, continuou a escrever, encenar e dirigir peças, apresentadas agora no Teatro Sant’Ana de Ponta grossa. Eloyna, sua filha mais velha, quase sempre fazia o principal papel feminino e era ela também que, nos saraus da época, declamava os poemas do pai, com o sentimento certo e a graça de sua beleza juvenil.
         Em 1922, Hilda, sua segunda filha, casou-se e sogro e genro já amigos há algum tempo, encontraram e cultivaram afinidades diversas. Com mais um amigo dentro da família, as atividades do Jornal dando-lhe suporte financeiro, vendo suas peças serem encenadas por duas grandes companhias teatrais do Rio de Janeiro, a de Jaime Costa e a de Maria de Castro, parecia que, enfim, a vida lhe havia dado a trégua merecida. Ledo engano, como diria outro poeta. Esse mesmo ano lhe roubou a vida de Felisberto, o Bertinho, seu filho de 12 anos que morreu de tétano. Em 1924 é Eloyna, de 22 anos, que se vai, vítima de uma febre sem diagnóstico certo. Fosse ou não fosse tifo, era irrelevante: o que contava é que aquela moça tão linda que, dez dias antes, fizera enorme sucesso num baile a fantasia na festa de Sant’Ana, vestida de gueixa, estava morta agora.
         E não havia consolo para aquela família: a mudança para Ponta Grossa que parecia, em tudo e por tudo, auspiciosa, de repente tornou-se um pesadelo. Adelaide tinha filhos pequenos ainda e, mesmo de coração partido, não havia como fugir de suas tarefas.
         Mas Cadilhe desabou: fechou-se no quarto sem comer, sem beber, sem lavar-se. Não houve apelo que atendesse: sua mulher, seus filhos, o genro tão chegado a ele, outros amigos, todos se revezavam à porta, tentando tirá-lo do desespero. Seis dias depois saiu do quarto: um homem de quarenta e poucos anos que parecia ter mais de 60, barbado, macilento, mas estranhamente calmo: tomou um banho, vestiu-se, beijou mulher e filhos e disse: “Apesar de toda a dor, a vida continua”... E retomou o trabalho.
         Por algum tempo sem aquele ânimo combativo que era sua marca registrada, mas recuperando aos poucos a verve antiga: emagreceu, a basta cabeleira tornou-se branca, mas das cinzas foi surgindo um novo Cadilhe, mais machucado pela vida, mas ainda um guerreiro e, mais do que nunca, um poeta. Continuou a fazer oposição ao governo e escreveu uma crônica especialmente virulenta que, por motivos óbvios, foi distribuída no silêncio da madrugada, na forma de folhetos anônimos. Dia seguinte a cidade, infestada pelos folhetos, comentava a lucidez da análise política do momento. Seus escritos podiam não trazer a assinatura explícita, mas embora disfarçado o estilo, tinha o timbre inconfundível do seu talento. E então, como soe acontecer, o governo tentou a intimidação: sem poder provar que era dele a autoria, mandou a cavalaria cercar o quarteirão de sua residência e a cavalhada, tirando faíscas dos paralelepípedos, corria e atendia ordens de comando aos gritos.
         Dentro de casa as crianças se encolhiam, se abrigavam no colo da mãe e perguntavam aflitas: “Mãe, eles vão levar papai?” Não levaram, mas outros entreveros assim se sucederam. Em vez de se amedrontar, Cadilhe assumiu mais acirradamente as críticas pelo Jornal. E então, uma noite, nas horas mortas da madrugada, invadiram a redação, quebraram e destruíram as máquinas de escrever, os linotipos, as impressoras, os papeis.
         Ali, na rua Dr. Colares, estava o retrato deslavado e cínico do arbítrio da força e da força do arbítrio. Foi uma luta dura: com a ajuda de um cunhado, do genro e de partidários, recompôs o jornal, passou a andar armado, mas não desistiu da militância.
         Algum tempo depois, a Rede Ferroviária lhe ofereceu novo cargo e, por insistência da família, decidiu voltar a Curitiba.
         Com o respaldo do bom emprego e mais as atividades literárias muito mais ativas na capital, ele e sua gente conheceram tempos mais amenos.
         Mas a inquietude natural de seu temperamento forjava sempre algumas crises novas: pegava polêmicas acirradas com outros intelectuais, se apaixonava por uma nova musa, tinha depressões profundas e se refugiava em Antonina para morrer, dizia ele, no lugar onde havia nascido.
         Emergia dessas crises como que purificado e encontrava sempre à sua espera Adelaide, o anjo por detrás do homem, com sua compreensão, com seu perdão irrestrito.
         Até que um dia, numa madrugada brumosa, sentiu-se terrivelmente mal. Mulher e filhas, acordadas em sobressalto, tentavam os remédios já conhecidos. Vendo-o piorar, uma das filhas saiu de camisola e despenteada a correr pela rua em busca do telefone que lhe traria um médico. O mais próximo era do Corpo de Bombeiros, que ficava onde hoje é a Biblioteca Pública, a duas quadras de distância. Chamou o médico em desespero e voltou para casa.
         Mas Cadilhe, que tivera tantos encontros com a poesia, tantos encontros com o sucesso, que estivera cara a cara com a tristeza tantas vezes, tinha naquela madrugada um encontro inadiável com a paz.
         Era o dia 10 de novembro de 1942. 



José Cadilhe

José Cadilhe nos últimos anos


O MANUSCRITO ORIGINAL